A estatística nos ensaios clínicos: Viés

Introdução

Os métodos estatísticos contabilizam formalmente as fontes de variabilidade nas respostas dos doentes ao tratamento. A utilização da estatística permite ao investigador clínico chegar a inferências razoáveis e precisas a partir da informação recolhida e tomar decisões sólidas na presença de incertezas. A estatística é fundamental para prevenir erros e desvios na investigação médica. Este artigo aborda o conceito de viés nos ensaios clínicos.

O que é um viés?

Viés é o ajustamento intencional ou não intencional do desenho e/ou conduta de um ensaio clínico e análise e avaliação dos dados que podem afetar os resultados.

O viés pode afetar os resultados de um ensaio clínico e levá-los a não ser fiáveis.

O viés pode ocorrer em qualquer fase da investigação, por exemplo, durante o seu desenho, recolha de dados, análise de dados e publicação.

Os tipos comuns de viés incluem:

  • Viés de selecção
  • Viés de medição (pode ser tanto na recolha de medições como na sua análise e interpretação)
  • Viés de publicação

Viés de selecção (durante o recrutamento de doentes)

Se os doentes forem selecionados de forma diferente de acordo com a sua idade ou estado de saúde, os resultados do tratamento podem ser mais proeminentes no grupo em que os doentes são geralmente mais saudáveis e mais jovens. Como tal, qualquer diferença nos resultados entre os dois grupos já não pode ser atribuída apenas ao tratamento recebido.

Prevenção de viés de seleção durante o recrutamento de doentes

A aleatorização tem como objetivo garantir que dois ou mais grupos de tratamento (braços de tratamento) são comparáveis tanto em termos de fatores conhecidos e desconhecidos especialmente num grande número de doentes.

Isto é feito através da distribuição de doentes pelos braços de tratamento utilizando técnicas de atribuição aleatorizada (ao acaso).

Uma aleatorização de doentes bem feita permitirá ao investigador avaliar os efeitos observados do tratamento (taxa de resposta, sobrevivência, etc.) realmente causados pelo tratamento e não por outros fatores (fatores exteriores).

Viés de selecção (no momento da análise)

Existem alguns problemas frequentes que podem surgir no decurso de um ensaio e que se relacionam com a adesão do doente (compliance) com o protocolo (metodologia do ensaio) e com o esquema de tratamento descrito. Por exemplo:

  • O tratamento pode ter sido interrompido ou modificado mas não de acordo com as regras especificadas no protocolo
  • As avaliações da doença podem ter sido adiadas ou não realizadas
  • Um doente pode decidir parar de participar no ensaio, etc.
  • Os doentes podem tornar-se não elegíveis após a aleatorização

Considere a configuração de um ensaio clínico comparando um novo tratamento experimental com o tratamento padrão. Neste ensaio, alguns doentes que estão a tomar o tratamento experimental estão demasiado doentes para ir à próxima visita na data definida. Uma abordagem possível seria incluir apenas doentes com acompanhamento completo na análise dos resultados, e, como tal, excluir da análise os doentes que não conseguiram comparecer a todas as visitas. No entanto, ao fazer isto, seleciona-se um subgrupo de pacientes que, por definição, apresentará um quadro artificialmente positivo do tratamento sob avaliação.

Prevenção de viés no momento da análise

Uma forma de o fazer é incluir todos os doentes aleatorizados na análise independentemente quer tenham recebido o tratamento ou não, ou seja, “sempre que aleatorizados, sempre analisados”. Este é um conceito estatístico chamado análise de intenção de tratar (ITT).

As análises ITT mantêm o equilíbrio das características iniciais dos doentes entre os diferentes braços de tratamento obtidos a partir da aleatorização. Como tal, os dados obtidos por análise ITT são considerados mais representativos da situação real.

Viés de medição (durante a recolha de dados)

O viés de medição pode ocorrer quando os instrumentos, operações ou sistemas para registar os dados apresentam falhas. Talvez um instrumento esteja calibrado incorretamente, ou talvez o horário das visitas do hospital não capte corretamente os eventos que não podem ser observados por outros meios.

Prevenção de viés de medição (durante a recolha de dados)

Para dar um exemplo, se estivermos a testar um medicamento que pode causar febre alta periódica (indicando danos no fígado) apenas é possível detectar isto se a frequência das visitas do hospital captar a ocorrência da febre. Então, os investigadores têm que ter a certeza que um calendário de visitas apropriado permite isto e, como tal, pode reduzir o viés de medição.

Os investigadores também precisam de garantir que todo o equipamento utilizado está calibrado de modo a garantir que registam resultados precisos (Boas Práticas de Laboratório (BPL)), ou seja, o termómetro deve registar a temperatura correta.

Ocultação

Também se podem evitar viés de medição através de um processo chamado ocultação. A ocultação é quando o tratamento alocado é desconhecido para os doentes e/ou para os investigadores. Nos ensaios em dupla-ocultação nem os doentes nem os investigadores sabem quem foi atribuído ao tratamento. Os ensaios em dupla-ocultação são concebidos para produzir resultados objetivos, uma vez que as expectativas do médico e do participante não afetam o resultado. Num ensaio em tripla-ocultação, nem os doentes, nem os investigadores nem o analista sabem quem recebeu o tratamento.

A ocultação é particularmente relevante quando o resultado do ensaio é subjetivo, como a redução da dor, ou quando um tratamento experimental está a ser comparado com um placebo. No entanto, enquanto um ensaio aleatorizado em dupla-ocultação é considerado o padrão ouro dos ensaios clínicos, a ocultação pode não ser sempre viável:

  • O tratamento pode causar efeitos adversos específicos que o torna fácil de identificar
  • Os tratamentos podem precisar de procedimentos diferentes para administração ou horários de tratamento diferentes.

Viés de medição (durante a análise dos dados)

Num ensaio clínico, é possível encontrar subgrupos de doentes que respondem melhor ao tratamento. Se os subgrupos forem identificados e utilizados para análise depois dos dados terem sido recolhidos, um viés é quase inevitável. A análise dos subgrupo envolve dividir os participantes do ensaio em subgrupos. Isto poderia basear-se em:

  • Características demográficas (por exemplo, sexo, idade)
  • Características iniciais (por exemplo, perfil genómico específico)
  • Utilização de qualquer outra terapia em paralelo.

Viés de publicação

Um viés de publicação significa que os resultados positivos da investigação têm maior probabilidade de ser publicados do que os resultados negativos. Um viés de publicação é prejudicial, porque impede o acesso aos resultados negativos da investigação, ou, por outras palavras, os investigadores ao planearem novas experiências podem ser enganados pelas informações disponíveis nos resultados publicados. Os resultados negativos podem informar sobre a falta de eficácia de um tratamento e a ausência de justificação para continuar com desenvolvimentos futuros. Em termos leigos, se fossem publicados mais resultados negativos da investigação, isto poderia impedir os investigadores de cometer os mesmos erros. Um viés de publicação funciona de duas formas: os investigadores podem ficar relutantes em submeter os resultados negativos para publicação; e as editoras, revistas e revisores do artigo podem também rejeitar a publicação de resultados negativos. .

Prevenção de viés de publicação

Estão em curso iniciativas para reduzir os viés de publicação. Uma delas é promover o registo dos ensaios clínicos com medicamentos antes da implementação. Por exemplo, o International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE) não irá publicar ensaios que não estejam registados em registos públicos como o Registo de Ensaios Clínicos dos EUA (https://www.clinicaltrialsregister.eu), clinicaltrials.gov, United States. Com estes registos, os investigadores e os doentes sabem quais os ensaios clínicos existentes, mesmo que os seus resultados nunca sejam publicados e podem entrar em contato com o promotor ou investigadores do ensaio para obter acesso aos resultados.

A2-4.33.2-V1.2